Reviravolta na Nissan – Saiba como Carlos Ghosn, um brasileiro, salvou a montadora japonesa

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Em março de 1999, Louis Schweitzer, CEO da Renault, ligou-me para saber se eu não gostaria de ir a Tóquio liderar uma reviravolta na Nissan, a combativa gigante automotiva do Japão. As duas empresas haviam acabado de selar uma aliança estratégica pela qual a Renault assumiria 5,4 bilhões de dólares de dívida da Nissan em troca de uma participação acionaria de 36,6%. Juntas, as duas montadoras se tornariam a quarta maior fabricante de veículos do mundo. No papel, o acordo fazia muito sentido para ambas as partes. A força da Nissan na América do Norte preenchia uma lacuna importante para a Renault, ao passo que o capital desta última reduzia a dívida colossal da Nissan. Os pontos fortes de cada uma delas também se complementavam: a Renault era conhecida por seu design inovador e a Nissan, pela qualidade de sua engenharia.

Para o sucesso da aliança, porém, eram preciso que a Nissan começasse a crescer e se tornasse um negócio produtivo, e foi por isso que Schweitzer me ligou. Acho que eu era um candidato natural a esse posto, já que havia acabado de contribuir para a transformação da Renault no “dia seguinte”de sua fusão com a Volvo. Tivemos de tomar algumas decisões polemicas sobre o fechamento de fábricas na Europa, algo muito difícil para uma empresa francesa tradicionalmente controlada pelo Estado. Não era a primeira vez que eu passava por um desafio semelhante. Nos anos 80, como chefe de operações da subsidiaria brasileira da Michelin, tinha de lidar com taxas de inflação completamente ensandecidas. Em 1991, como CEO da Michelin na América do Norte, fui incumbido de conduzir a fusão da empresa com a fabricante de pneus americana Uniroyal Goodrich, num momento em que o mercado entrava em recessão.

A Nissan, contudo, era um caso completamente à parte. Havia oito anos que a empresa lutava para voltar ao azul. Suas margens eram visivelmente baixas. De acordo com os especialistas, a Nissan perdia 1000 dólares em cada carro vendido nos Estados Unidos por falta de competitividade da marca. Não tardou para que eu descobrisse que os custos de aquisição na empresa eram cerca de 15% a 25% maiores que os da Renault. Outro fator que sobrecarregava ainda mais esse custo tão oneroso era a capacidade instalada, que excedia em muito suas necessidades. Só no Japão, as fábricas produziam praticamente 1 milhão de veículos a mais do que a empresa vendia por ano.

As dívidas da Nissan, mesmo depois dos investimentos da Renault, somavam 11 bilhões de dólares (para facilitar o entendimento do leitor, trabalharemos sempre com a taxa de câmbio de fim de setembro de 2001 – isto é, aproximadamente 120 ienes para 1 dólar). Era, sem dúvida, uma situação que não dava à empresa muita escolha: ou virávamos o negócio 180 graus, ou a Nissan deixava de existir.

Além disso, a situação era extremamente delicada. Em todas as reviravoltas empresariais, sobretudo as conduzidas em cenários de fusões ou alianças, o sucesso não se limita apenas a mudanças fundamentais na organização e nas operações da empresa. É preciso proteger também a identidade da companhia e a auto-estima do seu pessoal. Esses dois objetivos – mudanças e salvaguarda da auto-estima – podem facilmente entrar em conflito. Conseguir realizar as duas coisas é tarefa árdua e, por vezes, de equilíbrio bastante precário. Era esse exatamente o caso da Nissan, Afinal de contas, eu não passava de um estranho – vinha de fora e não era japonês – e, por isso mesmo fui recebido inicialmente com muito ceticismo pelos gerentes e funcionários da empresa. Eu sabia que se tentasse ditar regras de cima para baixo o tiro sairia pela culatra e todo o meu empenho só contribuiria para minar o moral e produtividade dos empregados. Contudo, se eu me comportasse passivamente, a empresa afundaria ainda mais.

Hoje, menos de três anos depois, fico satisfeito em poder dizer que a transformação da Nissan continua a produzir resultados excelentes. A empresa recuperou a lucratividade, e sua identidade é cada vez mais forte. Como isso foi possível? Por dois motivos fundamentais. Em primeiro lugar, em vez de impor um plano que ressuscitasse a empresa, mobilizei os gerentes da própria Nissan por meio de equipes funcionais formadas por funcionários dos mais diversos setores, e pedi a eles que identificassem as mudanças radicais a ser feitas e as implementassem. Em segundo lugar, a Renault sempre respeitou a cultura da Nissan, permitindo que a empresa desenvolvesse uma nova cultura corporativa baseada no que a cultura nacional do Japão tem de melhor. Nas próximas páginas, discutirei mais detalhadamente esse processo de transformação e a cultura da Nissan. No entanto, para compreender efetivamente sua história, é preciso entender, antes de mais nada, a forma surpreendente com que a empresa se desvinculou de seu passado.

Rompendo com a tradição

Quando cheguei à Nissan, no final da década de 90, a forma de fazer negócios da empresa era terrivelmente prejudicial ao seu desempenho. Não havia dinheiro, o que a impedia de fazer os investimentos de que tanto necessitava em sua já ultrapassada linha de produtos. Os primeiros carros que a empresa lançara no Japão e na Europa, o March (ou Micra, na Europa), por exemplo, já tinham quase nove anos. A concorrência, por sua vez, lançava um produto novo a cada cinco anos. O primeiro carro lançado pela Toyota nesses mercados tinha menos de dois anos. O March havia passado por algumas modificações cosméticas no decorrer de anos. Mas, basicamente, competíamos por 25% do mercado japonês e um percentual semelhante do mercado europeu com um produto antigo. As demais linhas de produção enfrentavam problemas parecidos.

O motivo pelo qual a Nissan deixara de investir no desenvolvimento de seus produtos era simples: economia. Pressionada por perdas operacionais persistentes e por uma dívida cada vez maior, a empresa estava permanentemente em dificuldades financeiras. Não era preciso que fosse assim. Na verdade, a Nissan tinha muito capital – o problema é que ele estava preso a investimentos financeiros (que em nada contribuíam para seu negócio) e também as propriedades, sobretudo em parcerias de keiretsu. O sistema keiretsu é uma das características mais duradouras do cenário econômico japonês. Por meio dele, as empresas industriais tem participação acionaria em outras companhias. Acredita-se que isso promova a lealdade e a cooperação mutua. No caso de grandes empresas, o portfólio chega à casa dos bilhões de dólares. Quando cheguei à Nissan, descobri que a empresa possuía mais de 4 bilhões de dólares investidos em centenas de empresas diferentes.

Acontece que a maior parte dessas participações acionárias era pequena demais para que a Nissan pudesse impor algum tipo de alavancagem administrativa a essas empresas, muito embora o volume de dinheiro envolvido fosse quase sempre bastante significativo. Um dos investimentos, por exemplo, consistia em uma participação de 216 milhões de dólares na Fuji Heavy Industries, uma empresa que, como fabricante dos carros e caminhões Subaru, disputa com a Nissan o mesmo nicho de mercado. Qual a lógica de aplicar um volume tão grande de dinheiro em 4% de uma companhia concorrente se não podia nem mesmo atualizar seus próprios produtos?

Foi por isso que, pouco depois que eu cheguei, começamos a desmantelar nossos investimentos em keiretsu. Apesar do temor generalizado de que essa queima prejudicasse nosso relacionamento com os fornecedores, ocorreu exatamente o contrário: hoje, nosso laços são mais fortes que nunca. O fato é que nosso parceiros distinguem muito bem entre a Nissan cliente e a Nissan acionista. Pouco importa a eles o que fazemos com nossas ações, contanto que continuemos seus clientes. Na verdade, parece que a redução de nosso ativos foi benéfica para eles, pois não apenas concederam o desconto que a Nissan pedia côo ainda aumentavam sua lucratividade. Todos os clientes da Nissan incrementaram seus lucros em 2000. Embora a quebra do keiretsu parecesse uma atitude radical na época, muitas outras empresas japonesas hoje trilham esse mesmo caminho.

Os problemas da Nissan não eram apenas de ordem financeira. Longe disso. Nosso maior desafio era cultural. A exemplo de outras empresas japonesas, ela remunerava e promovia seus funcionários com base no tempo de casa e idade. Quanto mais tempo de casa tinha um funcionário, mais poder e dinheiro ele recebia, independentemente de seu desempenho. Era inevitável que essa prática gerasse uma certa complacência, o que acabava prejudicando a competitividade. Afinal, quem compra um carro exige dele desempenho mais do que qualquer outra coisa. Para o consumidor, o que conta é o design, a qualidade, preços razoáveis e a entrega na data combinada. Para ele, não importa quem faz o quê na empresa. Tampouco importa saber como a companhia opera. Portanto, nada mais lógico do que criar sistemas de recompensa e de incentivo com foco na performance, e não em idade, sexo ou nacionalidade.

Decidimos então abolir o privilegio de quem tinha mais tempo de casa. É claro que com isso não começamos automaticamente a promover os funcionários mais jovens. Na verdade, todos os vice-presidentes seniores que nomeei nos últimos dois anos têm uma longa folha de serviços prestados à empresa, embora, de modo geral, não fossem eles os mais antigos na organização. Analisamos o histórico de desempenho das pessoas. Se, por acaso, o individuo com melhor histórico fosse também um funcionário antigo, ótimo. No entanto, se o segundo, o terceiro ou até mesmo o quinto colocado por ordem de idade tivesse um desempenho superior a outros situados mais no topo da lista, não hesitávamos em promovê-lo. É natural que surjam problemas quando se mexe em práticas há tanto tempo estabelecidas. Quando se nomeia um jovem para executar uma tarefa qualquer no Japão, a pessoa sofre exatamente por causa de sua pouca idade – em alguns casos, os mais velhos recusam-se a cooperar com ele como deveriam. Não há dúvida de que esse tipo de experiência pode ser um bom teste para o modelo de liderança que o gerente traz para o trabalho.

Reformulamos também o sistema de remuneração, de modo que o foco fosse o desempenho. No modelo de remuneração tradicional do Japão, os gerentes não têm opções de ações, e é rara a inclusão de benefícios no pacote salarial dos executivos. Se a media de aumentos numa determinada empresa é de 4%, por exemplo, os funcionários de melhor desempenho podem esperar aumento de 5% a 6% e os de performance menos brilhante recebem em torno de 2% ou 2,5%. O sistema abrange também os estratos mais elevados da gerência. Isso significa que os indivíduos cujas decisões têm maior impacto sobre a empresa têm pouco incentivo para tomar decisões acertadas. Mudamos tudo isso. Os funcionários com alto grau de desempenho têm hoje incentivos que podem chegar a mais de um terço de seu pacote salarial anual. Além disso, eles têm direito à opção de ações. Também nesse ponto outras empresas japonesas começaram a fazer mudanças semelhantes.

Outro problema cultural muito arraigado que tivemos de enfrentar foi a incapacidade da organização de assumir responsabilidades. Tínhamos uma cultura de culpa. Se a performance da empresa era sofrível, a culpa recaía sempre sobre alguém. Vendas culpava o planejamento do produto. O planejamento do produto culpava a engenharia e a engenharia, o financeiro. Tóquio culpava a Europa, e a Europa culpava Tóquio. Uma das raízes básicas do problema era o fato de que os gerentes não tinham uma área especifica sob sua responsabilidade.

Na verdade, todo um staff de gerentes mais graduados – conhecidos como “conselheiros” ou “coordenadores” – não tinha nenhuma responsabilidade operacional. O conselheiro, uma figura muito conhecida nas subsidiarias de empresas japonesas no exterior, servia originalmente como consultor. Ele ajudava na implementação de práticas de administração inovadoras vindas do Japão. Esse papel tornou-se obsoleto com a difusão dos métodos japoneses. Os conselheiros, porém, continuaram a existir, mas pouco faziam, exceto minar a autoridade dos gerentes da linha. Portanto, eliminamos essa função na Nissan e demos a todos os conselheiros responsabilidades diretamente vinculadas ao processo operacional. Redefini também os papeis de outros gerentes da empresa, bem como os do pessoal da Renault que viera comigo. Todos eles agora têm responsabilidades nas linhas e sabem exatamente o que a Nissan espera deles. Quando algo de errado ocorre, as pessoas assumem a responsabilidade pela correção.

Mobilizando equipes transfuncionais

Todas essas mudanças tiveram um impacto enorme. Elas contrariavam não apenas práticas operacionais há muito estabelecidas na Nissan como também algumas normas comportamentais da sociedade japonesa. Eu sabia que não teria sucesso se tentasse simplesmente impor as mudanças de cima para baixo. Em vez disso, decidi usar como peça fundamental da mudança um conjunto de equipes transfuncionais. Não era a primeira vez que eu o fazia. Em minhs experiências anteriores, as equipes foram imprescindíveis para que os gerentes pudessem enxergar além dos limites funcionais ou regionais que definiam suas responsabilidades diretas.

Minha experiência mostrou que raramente os executivos vão além de suas fronteiras. De modo geral, engenheiros preferem resolver seus problemas com outros engenheiros. Vendedores preferem a companhia de outros vendedores e americanos se sentem mais à vontade entre americanos. O problema das equipes funcionais ou regionais é que os indivíduos poucas vezes se dão ao trabalho de fazer perguntas um pouco mais complicadas. Nas equipes transfuncionais, pelo contrário, as equipes ajudam os gerentes a pensar de maneiras diferentes e a desafiar as práticas existentes. Também propiciam um mecanismo que explica o por quê das mudanças e facilita a comunicação de decisões mais difíceis a toda a organização.

Transcorrido um mês desde a minha chegada, já havia nove equipes em operação. Suas áreas de responsabilidade compreendiam atividades como pesquisa e desenvolvimento, estrutura organizacional e até mesmo complexidade do produto. Juntas, elas trabalharam com os principais impulsionadores da performance da Nissan.

Pusemos as equipes para trabalhar a todo o vapor. Demos a elas três meses para estudar as operações da empresa e apresentar sugestões que pudessem tornar a Nissan novamente lucrativa, além de apontar caminhos que permitissem à empresa crescer no futuro. As equipes reportavam-se aos nove membros da comissão executiva. Embora elas não tivessem poder de decisão – o que cabia apenas a mim e à comissão executiva – tinham acesso franqueado a todos os aspectos operacionais da empresa. Nada foi proibido.

As equipes compunham-se de aproximadamente dez membros, todos saídos das fileiras da média gerência, isso é, gente com responsabilidade nas linhas. A limitação do número de participantes a dez tinha como objetivo permitir eu as discussões fluíssem a um ritmo razoável. Dada a urgência da situação, não podíamos nos dar ao luxo de perder tempo em debates muito demorados. Sabíamos, porém, que um grupo de dez pessoas não seria suficiente para cobrir em profundidade todas as questões que surgiriam pelo caminho. Para solucionar esse problema, as equipes dividiram-se em sub-equipes constituídas por seus membros e por gerentes escolhidos por elas. As sub-equipes, também compostas de dez componentes no máximo, concentravam-se em questões especificas enfrentadas pelos grupos maiores. O time de fabricação, por exemplo, possuía quatro sub-equipes focadas em capacidade, produtividade, custos fixos e investimentos. Juntas, as equipes e sub-equipes somavam 500 pessoas.

Para que as equipes pudessem exercer autoridade dentro da organização, destacamos dois “líderes” da comissão diretora aos quais deveriam se reportar. Esses lideres eram como que patrocinadores dos grupos, e facilitavam sua atuação removendo obstáculos institucionais. Por que dois lideres e não apenas um? Para garantir que as equipes não limitassem demais seu foco de atuação. Decidimos, por exemplo, que Nabuo Okubo, vice-presidente executivo para pesquisa e desenvolvimento, e Itaru Koeda, vice-presidente executivo de compras, ficariam responsáveis pela equipe de compras. A atuação conjunta dos dois resultaria em equilíbrio, de modo que uma perspectiva funcional não predominasse sobre a outra.

É importante também que o processo de trabalho das equipes não pareça um exercício de culpa imposto pela empresa. Portanto, é preciso que os lideres das equipes procurem não interferir em suas operações, comparecendo apenas a algumas reuniões. Os dez membros permanentes dos grupos executavam o trabalho propriamente dito, enquanto um deles agia como “piloto” da equipe, tomando para si a responsabilidade de conduzir a pauta dos trabalhos e discussões. Os pilotos eram selecionados pela comissão executiva. Juntos, lideres e pilotos escolhiam o restante da equipe. Geralmente, os pilotos eram gerentes com experiência prática dos problemas operacionais da Nissan e com credibilidade na hierarquia e na linha. Interessei-me pessoalmente pela escolha deles porque isso me dava a oportunidade de conhecer mais de perto a futura geração de lideres da empresa.

A implementação desse processo ajudou os gerentes a se tornar muito mais conscientes de suas potencialidades, bastando para isso que se concentrassem em suas tarefas. Foi o que aconteceu com a equipe de compras, à qual impus o desafio de descobrir meios de baixar os custos dos fornecedores em 20%, de modo que a Nissan ficasse no mesmo patamar de outras montadoras. Disse a eles que para alcançar um terço da economia pretendida seria preciso fazer mudanças nas especificações de engenharia, várias das quais eram muito mais severas na Nissan do que em outras companhias. Em um primeiro momento, os engenheiros achavam impossível que o percentual de redução que eu havia proposto pudesse ser alcançado com mudanças nas especificações.

Contudo, ao se envolver nos trabalhos práticos das equipes, esses mesmos engenheiros constataram seu erro. Na verdade, eles conseguiram um percentual maior do que eu havia proposto graças a um trabalho de observação que mostrou ser possível realizar milhares de pequenas alterações. Descobriu-se, por exemplo, que o padrão de qualidade das pecas dos faróis estava muito acima do padrão da concorrência, muito embora sua performance não apresentasse nenhum ganho significativo. Ao introduzir uma pequena redução no padrão das superfícies dos refletores dos faróis, a Nissan conseguiu reduzir a zero a taxa de rejeição daquele componente. Outra pequena redução na especificação de resistência ao calor permitiu à empresa usar materiais menos caros nas lentes e nos painéis internos dos faróis. Juntas, as duas modificações baixaram os custos dos faróis em 2,5%.

O resultado de três meses de trabalho das equipes tornou-se uma espécie de mapa para a grande virada da empresa. Em outubro de 1999, fiz o lançamento público do Plano de Renovação da Nissan. O plano, desenvolvido pelos próprios executivos da empresa, trazia em suas linhas gerais as grandes mudanças nas práticas de negócios que descrevi anteriormente. Prescrevia-se também ali a aplicação de um remédio amargo: o fechamento de fábricas, redução da folha de pagamento – tudo isso no Japão. A imprensa, é claro, dava destaque à forma como desafiávamos as tradições empresariais japonesas e também aos cortes de funcionários – uma atitude considerada revolucionaria em uma sociedade habituada à tranqüilidade do emprego vitalício. Embora essas mudanças fossem extremamente necessárias e importantes, a história não acabava por aí.

Transformar uma empresa como a Nissan era mais ou menos como disputar uma corrida de Fórmula 1. Quem quiser seguir pelo trajeto com velocidade máxima tem de acelerar e frear o tempo todo. O plano de renovação, portanto, tinha muito a ver com o crescimento futuro da empresa (aceleração) e com o corte de custos (freadas). Não podíamos trabalhar achando que “primeiro reduziríamos os custos, depois cresceríamos”. Tínhamos que fazer as duas coisas juntas. Portanto, paralelamente às reduções e ao fechamento de fábricas, o pleno previa também vários investimentos de grande porte, como 300 milhões de dólares destinados à produção de modelos da Nissan na fábrica brasileira da Renault e 930 milhões de dólares para a construção de uma nova unidade em Canton, no Mississippi. Anunciamos também nossa entrada no mercado de minicarros no Japão e recuperamos o controle de nossas operações na Indonésia.

As equipes transfuncionais são hoje parte da estrutura administrativa da Nissan. Continuo a me reunir com os pilotos ao menos uma vez por ano, quando então as equipes me informam sobre a evolução de suas atividades. Acrescentamos inclusive uma décima equipe voltada para custos de investimentos e eficiência. Hoje, a missão das equipes é dupla. Em primeiro lugar, funcionam como sentinelas do processo de implementação do plano de renovação. Em segundo lugar, buscam descobrir novas maneiras de aperfeiçoar o desempenho da empresa. Em suma, são elas as ferramentas que me permitem saber com certeza que a Nissan continua desperta e em forma.

A importância do respeito

Como era de esperar, os cortes feitos no Japão deixaram o público inseguro em relação ao plano de renovação e eu, como estrangeiro e em posição de comando, fui alvo de grande parte da artilharia pesada. Dentro da Nissan, porém, as pessoas entendiam que não estávamos tentando dominar a empresa, mas restaurá-la à sua glória original. Os funcionários confiavam em nós por uma razão muito simples: mostramos a eles que os respeitávamos. Emvora estivéssemos introduzindo modificações profundas no modo como a Nissan dirigia seus negócios, sempre nos preocupamos muito em proteger sua identidade e sua dignidade.

Sempre pautamos nossa conduta por esse comportamento, mesmo nas primeiras negociações entre a Renault e a Nissan. Como muita gente sabe, a Renault não era a primeira opção da lista da Nissan. A empresa preferia a DaimlerChrysler, o que não era de estranhar, dadas sua robustez financeira e a reputação que tinha na época. Embora a Nissan estivesse negociando com a Renault, mantinha também negociações com a DaimlerChrysler, e eu pessoalmente achava que a escolha recairia sobre esta última. No fim, porém, a DaimlerChrysler retirou-se no processo, pois achava a Nissan uma aposta arriscada demais. Nas palavras de um executivo da Chrysler, apostar na Nissan seria como colocar 5 bilhões de dólares dentro de um contêiner de aço e jogá-lo no mar.

Com a DaimlerChrysler fora da disputa, a Renault tornou-se a única esperança de sobrevivência para a Nissan. O outro interessado, a Ford, havia muito abandonara a corrida. Em tais circunstâncias, era de esperar que a Renault fizesse exigências ainda mais severas à Nissan. Em vez disso, porém, preferiu não tirar vantagem de seu poder de barganha no curto prazo. Se começássemos a explorar logo de início nosso parceiro, teríamos de pagar por isso mais tarde. Creio que a decisão da Renault de manter os termos de sua proposta antes mesmo que a DaimlerChrysler se retirasse do processo contribuiu enormemente para a preservação do moral dos gerentes da empresa num primeiro momento.

Desde então a cooperação entre as duas empresas mostrou que não há motivos para temer uma dominação estrangeira. Embora as exigências de uma reviravolta significassem para a Nissan a adoção de uma atitude de aprendiz muito mais do que para a Renault, o relacionamento entre ambos hoje é equilibrado. O pessoal da Renault já começa a aprender com a Nissan, e a alta gerência da Nissan passa às unidades da Renault o seu know-how. Na verdade, após apenas três anos na Nissan, ninguém mais pode dizer que o pessoal trazido por mim ainda pertence à Renault. Além disso, creio que, quanto mais a identidade da Nissan se fortalece, os americanos, europeus e japoneses que aqui trabalham ficam cada vez mais parecidos, e não diferentes.

De modo geral, creio que a identidade e a cultura da Nissan desempenharam um papel bem mais importante do que seu país de origem. Acho que podemos dizer o mesmo da maioria das empresas. Na verdade, quem tenta descobrir na cultura de um país o motivo do fracasso ou do sucesso de uma empresa está procurando no lugar errado. O papel da cultura nacional limita-se exclusivamente a fornecer à empresa os recursos humanos básicos de que precisa para ser competitiva. Obviamente, se esse recursos não receberem treinamento ou se o ambiente de negócios for imaturo, nem as melhores companhias poderão fazer muita coisa. De igual modo, não importa o grau de potencialidade dos recursos, jamais poderemos transformá-los em ouro se não entendermos a cultura corporativa. A cultura corporativa ideal explora os aspectos produtivos da cultura nacional. No caso da Nissan, buscamos inspiração na combinação entre competitividade e espírito comunitário, próprios dos japoneses. Daí saíram empresas como a Sony e a Toyota – e a Nissan, em seus primórdios.

Conquistando a confiança por meio da transparência

Para que um processo de transformação como o da Nissan funcione, é preciso que as pessoas acreditem que podem falar a verdade e que é possível confiar no que ouvem de outros. A construção da confiança, porém, é um projeto de longo prazo, por isso os indivíduos que dele participam devem demonstrar que fazem de fato o que dizem. Isso leva tempo, mas é preciso começar. Desde o início, deixei bem claro que todos os números deveriam ser cuidadosamente examinados. Jamais aceitei relatórios que não fossem absolutamente claros e verificáveis, porque esperava que as pessoas pudessem sempre justificar quaisquer observações ou alegações que fizessem. Eu mesmo dei o exemplo quando anunciei o plano de renovação e disse que renunciaria se não conseguíssemos cumprir os compromissos que tínhamos assumido.

De modo geral, procurei também impor transparência à organização, de modo que todos soubessem o que seu colega de lado estava fazendo. Tradicionalmente, por exemplo, as unidades americanas e européias da empresa operavam independentemente, compartilhando poucas informações e know-how com o restante da empresa. As unidades tinham seus próprios presidentes e equipes regionais, cuja missão consistia na construção de elos com a matriz e, conseqüentemente, com o restante da empresa. Na verdade, porém, os presidentes regionais e suas equipes estavam erigindo muros, e era pouca a cooperação entre os diferentes setores.

Por isso, decidi acabar com o cargo de presidente regional e anunciei a mudança em março de 2000, seis meses depois da publicação do plano de renovação da Nissan. Hoje, quatro comissões de gestão reúnem-se uma vez por mês e têm como tarefa supervisionar as operações regionais da empresa. Cada comissão conta com a participação de representantes das primeiras funções: fabricação, compras, vendas e marketing, finanças, etc. Sou presidente da comissão para o Japão, enquanto as comissões par o mercado europeu, americano e ultramarinos de modo geral são presididas por vice-presidentes da Nissan japonesa. Procuro também estar presente às reuniões dos comitês europeu e americano pelo menos quatro vezes ao ano. A reorganização foi uma das poucas modificações que fiz unilateralmente, mas que em momento algum deixou de ser consistente com meus propósitos de transparência dentro da organização.

Equipes transfuncionais e transcorporativas

O trabalho transfuncional em equipe foi de fundamental importância par a transformação da Nissan. Um enfoque semelhante tornou-se também crítico para o sucesso da aliança da empresa com a Renault.

Em certo momento das negociações entre as duas empresas, veio à tona uma discussão sobre como se daria o trabalho conjunto. Os negociacores da Renault achavam que a melhor maneira de equacionar a questão seria por meio de uma série de associações. Portanto, insistiam na discussão de todas as questões legais próprias de uma joint venture: quem contribuiria com o quê e quanto, de que forma e produção seria compartilhada, e assim por diante. A equipe da Nissan discordou. Seu objetivo era trabalhar questões administrativas e de negócios, e não os aspectos jurídicos da parceria. Conseqüentemente, as negociações emperraram.

Louis Schweitzer, CEO da Renault, perguntou-me se eu tinha alguma sugestão para o impasse. Disse-lhe então que abandonasse a idéia de associação. Se você quiser que as pessoas trabalhem juntas, a última coisa de que precisa é uma estrutura jurídica em seu caminho. Propus que fossem constituídas equipes informais com funcionários de ambas as empresas – equipes transcorporativas. Algumas equipes concentraram-se em aspectos específicos da fabricação e entrega de automóveis – havia, por exemplo, uma equipe que cuidava do planejamento do produto e outra responsável pela produção e pela logística. Outras estavam focadas em uma região determinada – Europa, por exemplo, México e América Central. No total, foram criadas 11 equipes transcorporativas.

Por meio dessas equipes, os gerentes da Renault e da Nissan descobriram diversas formas de promover os pontos positivos das duas. A experiência da equipe transcorporativa do México é um bom exemplo. Na época em que a aliança entre as companhias foi selada, no início de 1999, a Nissan padecia de excesso de capacidade no mercado mexicano, em decorrência da fraca demanda doméstica e das vendas pífias dos ultrapassados modelos Sentra nos Estados Unidos. A Renault, pelo contrário, cogitava voltar ao mercado mexicano, que abandonara em 1986. Juntar os gerentes das duas empresas era o mesmo que reconhecer imediatamente a sinergia dessa oportunidade. Em apenas cinco meses, foi traçado um plano detalhado para a produção dos carros da Renault em fábricas da Nissan. Um ano depois, em dezembro de 2000, as linhas de montagem produziam os primeiros modelos da Renault.

A evolução da Nissan foi impressionante. Na fábrica de Cuernavaca, a taxa de utilização da capacidade instalada subiu 55% no final de 1998, totalizando quase 100% de capacidade aproveitada. No que se refere à Renault, o acordo acelerou significativamente sua volta ao México. Na verdade, a Renault começou a vender carros no México antes mesmo que as linhas de montagem produzissem o primeiro Scénic. Uma vez que o governo mexicano reconhecia a Renault como parceira do grupo Nissan, a empresa pôde começar imediatamente a exportação de carros para o país, sem a necessidade de aprovação em separado do governo. Além disso, a Renault podia usar as concessionárias e os distribuidores locais da Nissan.

Atualmente, as equipes transcorporativas e transfuncionais têm papéis complementares: as primeiras atuam como vigilantes, zelando para que o plano de renovação se mantenha sempre vivo em ambas as empresas. As segundas alimentam a aliança.


Fonte: Exame Harvard Business Review – abril de 2003 – pgs. 44 a 53

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