50 Princípios de Liderança e Marketing Pessoal
5 de fevereiro de 2019Chefes autoritários
5 de fevereiro de 2019Novos estudos mostram que a perseguição feita pelo mau chefe não
afeta apenas a produtividade das empresas – também faz mal à saúde dos
funcionários.
Aos 35 anos, Philippe Rouchou era gerente comercial de uma grande companhia
européia com sede em São Paulo. Com dez anos de casa, aparentemente não tinha
motivo para maiores preocupações com a carreira. Até que, num processo de
fusão, a empresa foi incorporada a outro grupo e, na troca de comando, Rouchou
ficou subordinado a um chefe recém-chegado. O que poderia ser um fato normal na
vida de qualquer assalariado transformou sua rotina num inferno. O novo
superior o proibiu de falar em reuniões e, depois de algum tempo, passou a não
mais lhe dirigir a palavra. Ao mesmo tempo, foi reduzindo sua área de atuação.
Progressivamente acuado, Rouchou mergulhou num sofrimento com reflexos físicos:
insônia, enxaqueca, dores na coluna, emagrecimento. Acabou demitido. “Foi
um choque”, recorda. “Depois de dez anos ouvi que não me encaixava no
perfil”. Hoje, esse período faz parte de um passado de que ele não gosta
de se lembrar, mas que foi superado. Como gerente de vendas da Nikon para o
Mercosul há dois anos, deu a volta por cima. Desta historia, só o final feliz
não é corriqueiro. A situação psicologicamente massacrante a que ele foi
submetido por seu chefe é comum nas empresas e, já há algum tempo, tem sido
apontada como prejudicial à produtividade. O que não se sabia – ou não se
levava em conta – até muito recentemente, é que a má chefia não abala apenas a
saúde das companhias. Ao contribuir para a degradação do ambiente de trabalho,
ela traz danos concretos à saúde de seus subordinados.
É a esse universo de sofrimento cotidiano no trabalho que a médica paulista
Margarida Barreto se dedica há cinco anos. Em 1996, iniciou a pesquisa que hoje
reúne milhares de historias ouvidas de gente que trabalha em empresas de todos
os portes, de todos os setores, em todos os níveis hierárquicos. Do mais
subalterno trabalhador da industria aos mais altos níveis executivos há relatos
de chefes que infernizam a vida, atrapalham o trabalho e prejudicam a saúde de
seus subordinados. As historias contadas pelos entrevistados vão muito alem das
cobranças de resultados normais em qualquer emprego, mesmo que às vezes feitas
alguns decibéis acima do que qualquer um gostaria. São comuns relatos de chefes
que simplesmente passam a ignorar o subordinado, deixando de dirigir-lhe a
palavra por dias a fio. Ou de pessoas que, de uma hora para outra, ficaram seu
computador, sua copiadora ou qualquer outro instrumento de trabalho. Ou, então,
foram isoladas fisicamente. “O castigo ainda é uma prática muito
comum”, diz ela. “São atitudes que desqualificam, desmoralizam,
desacreditam o funcionario, e muitas vezes o levam a pedir demissão.”
Margarida Barreto tem 25 anos de experiência como médica dod trabalho e
concluiu no ano passado sua tese de mestrado em psicologia social na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, na qual analisa os efeitos do que chama de
“uma rotina de humilhações” sobre a saúde. Para esse trabalho, ela
ouviu cerca de 2000 trabalhadores de 97 grandes industrias de São Paulo. Muitos
relataram sofrer humilhações constantes e, simultaneamente, apresentaram
sintomas já amplamente associados a situações de stress, como distúrbios de
sono, dor de cabeça e pressão alta. A partir daí, resolveu ampliar seu universo
de pesquisa para profissionais de outros setores e incluir os níveis gerenciais
e executivos. Os relatos são espantosamente parecidos. “Quem precisa do
emprego tem de calar-se e agüentar. Aí você sente tudo. Vêm as dores, a raiva,
a revolta”, resume um dos entrevistados, que trabalha na indústria
química.
Esse foi o primeiro trabalho a expor, no Brasil, um problema que vem chamando a
atenção de especialistas em vários paises. Os alertas vêm de todos os lados. A
saúde mental nas empresas é uma das maiores preocupações da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), e tem aparecido nas estatísticas como um dos
principais fatores de aposentadoria precoce. Na União Européia, o Fundo Europeu
para a Melhora das Condições de Trabalho, mantido por sindicatos, estima que
cerca de 12 milhões de trabalhadores (8% do total) sofrem de problemas
decorrentes de opressão e humilhação nas empresas. E nos Estados Unidos, John
Kotter, um dos maiores especialistas em recursos humanos do momento, autor de
best-seller como Liderando Mudança e Afinal, o que fazem os Lideres, concluiu
sua análise sobre as conseqüências da liderança inadequada com cores fortes.
“Mais dramáticos que qualquer número são os casos singulares de pessoas
que sofrem sob o comando de tiranos e incompetentes”, diz. “A dor,
exibida com espalhafato ou sofrida em silêncio, pode ser imensa quando as
pessoas perdem o emprego devido a reengenharias incompetentes ou se esgotam sob
a pressão de ter de sustentar resultados abalados”.
O grave nisso tudo é que, diferentemente do que acontece com os riscos físicos
de determinados ambientes de trabalho, como exposição a poeiras e gases que
provocam doenças pulmonares ou más condições de segurança, que aumentam os
acidentes de trabalho, a pressão psicológica é invisível. Portanto, é
impossível medi-la a não ser a partir de suas conseqüências sobre a mente e o
corpo de quem trabalha. Muitas vezes, inclusive, a pior opressão vem de
atitudes aparentemente bobas, mas tão comuns que sua descrição transformou em
best-seller na França o livro Assédio Moral, a Violência Perversa no Cotidiano,
da psicanalista Marie-France irigoyen. Lançado em 1999, o livro já vendeu quase
400.000 exemplares e foi editado em quinze paises – inclusive aqui, pela
Bertrand Brasil. O sucesso se deve à narrativa de situações pelas quais a
maioria das pessoas já passou. Como num filme de terror, uma situação
aparentemente inofensiva vai se tornando perigosa e assustadora. Num primeiro
momento, as pessoas envolvidas tentam ignorar as agressões que recebem. Em
seguida, os ataques vão se multiplicando e a vítima se vê acuada, aniquilada,
sem forças para reagir diante da pressão de alguém mais forte e poderoso.
“Não se morre disso, mas perde-se uma parte de si mesmo. Volta-se para
casa, a cada noite, exausto, ofendido, deprimido. E é difícil
recuperar-se” diz a autora.
A recuperação é tão difícil que muita gente não consegue. A bancária Maria
Antonia Rebelo acabou incluída no plano de demissão voluntária (PDV) do
Santander depois de 23 anos e meio de serviço, iniciado com um concurso para o
Banespa. Foi no Banespa que Maria Antonia conheceu um chefe tirano. Agora, aos
44 anos, ainda vive à base de antidepressivos e chora toda vez que se lembra das
humilhações por que passou. Antonia foi afastada da função de caixa no Banespa
porque desenvolveu uma tendinite. Seu chefe a ridicularizava por causa da
doença, dizendo que ela estava inventando motivo para não trabalhar. E começou
a transferi-la de setor, sempre sob a alegação de que não estava dando certo.
“Acabei acreditando que era incompetente, ou louca”, conta Antonia.
É uma reação comum, diante de um cerco cada vez mais fechado, o subordinado
acabar se comportando de maneira a justificar a punição. Numa situação de
crise, o indivíduo pode reagir dando o melhor de si para achar soluções. Mas,
numa circunstância em que tem que provar que é bom apesar de estar pressionado
e inseguro, ele só vai conseguir mostrar a própria fragilidade, expor os próprios
defeitos. Acaba dando razão ao chefe que o considera incompetente e acrescenta
mais um item ao seu rol de motivos de sofrimento: a vergonha. “Trata-se de
um fenômeno circular. Uma seqüência de comportamentos deliberados por parte do
agressor destina-se a desencadear a ansiedade da vítima, o que provoca nela uma
atitude defensiva, que é, por sua vez, geradora de novas agressões”,
analisa Marie-France Irigoyen.
O lado mais cruel desse tipo de sofrimento é que ele atinge o que se
transformou no centro da vida do homem moderno. Mais do que fonte de
sobrevivência, o trabalho constitui hoje a principal identidade do cidadão.
Depois do nome, é a profissão, ou o emprego, que define o lugar do indivíduo no
mundo. Por isso é tão dolorosa a experiência de ver seu trabalho ignorado ou
desqualificado – além, evidentemente, do medo de ficar desempregado que a
desaprovação do chefe provoca. O psiquiatra João Ferreira, diretor do Instituto
de Psiquiatria da Universidade Federal do rio de Janeiro (Ipub), cita uma
pesquisa na qual foram entrevistados 1800 funcionários do Banco do Brasil sobre
suas condições de trabalho. A queixa principal, surpreendentemente, não foi a
de excesso de serviço ou de salário baixo. “A esmagadora maioria das
reclamações referiu-se à falta de reconhecimento. É isso que incomoda mesmo,
causa ressentimento e rancor”, diz Ferreira.
O assunto pega fogo na internet, onde existem dois sites exclusivamente
dedicados a esse tipo de conflito (www.assediomoral.f2s.com/index2.htm e
www.assediomoral.org), que recebem centenas de relatos por mês. O presidente da
Yahoo! No Brasil, Bruno Fiorentini, é um que quase sucumbiu à pressão de seu
primeiro chefe, numa grande multinacional com sede no Rio de Janeiro. “ele
queria me convencer de que eu era incompetente, e podia ter conseguido”,
lembra Fiorentini, que carregou para a empresa que hoje dirige uma grande
preocupação em fechar os espaços para abusos de chefias. Na Yahoo! Foi
instituído um sistema de avaliação múltiplo. Cada diretor é avaliado por outros
diretores, pelos gerentes que lhe são subordinados e pela presidência.
“Isso dificulta muito as injustiças que podem acontecer quando a
comunicação está restrita a um único chefe”, diz. Essa é uma tendência em
boa parte das grandes empresas, que já incorporaram à sua administração a idéia
de que o relacionamento humano está diretamente ligado à produtividade.
“É fundamental ter habilidade para lidar com gente, para não perder a
contribuição que cada um pode dar a qualquer projeto”, diz Antonio Carlos
Martins, diretor da Perfil Consultores, a maior consultoria de recrutamento de
executivos do Rio. Em sua rotina de entrevista com candidatos a postos
importantes em grandes companhias, Martins já percebeu que a preocupação existe
dos dois lados. As corporações fazem uma série de exigências e consideram
inaceitáveis alguns defeitos em seus chefes. Os candidatos, por seu lado,
querem saber qual é a organização, seu porte, sua importância no mercado e
também quem será seu superior imediato. “eles sabem que na vida profissional
um mau chefe pode provocar prejuízos irreversíveis à carreira”, afirma.
Mas, se as empresas andam tão preocupadas com esse aspecto – e têm efetivamente
tomado medidas para melhorar o ambiente de trabalho – por que o chefe carrasco
ainda está tão presente? A diretora de recursos humanos da Xerox do Brasil,
Priscila Soares, é pragmática. Antes de iniciar qualquer análise, ela ressalva
que, do lado do subordinado, existe um desejo irrealizável de trabalhar sem
pressão. “Num mundo competitivo como o nosso, não há como fugir da
pressão, das metas, da busca por melhores resultados. Não adianta ser contra ou
a favor, tem de encarar”, diz. É verdade que o panorama da economia
mundial é para lá de desfavorável. Os índices de desemprego não param de
crescer, e o fantasma da falta de trabalho é mais assustador que qualquer
problema no emprego.
Isso não significa, contudo, que as empresas não tenham responsabilidade sobre
os abusos cometidos por seus chefes. Priscila admite que normalmente as
companhias subestimam essa função. “Um gerente precisa conhecer muito bem
o funcionamento da empresa e ter um bom relacionamento com as pessoas. Muitas
vezes se privilegia uma perna só”, avalia. Aliás, nestes tempos de
descoberta da importância das relações humanas para a produtividade, o erro
mais freqüente é dar excessiva importância ao bom relacionamento e deixar de
lado a capacidade gerencial propriamente dita. “O resultado é um desastre.
Afinal, ninguém respeita chefe bonzinho”, diz Priscila, ela mesma
classificada por alguns de seus comandados como “um trator”.
O aspecto curioso da situação é que, observados sob outro ângulo, os chefes
também são vítimas da pressão no trabalho – de certa forma até mais que seus
subordinados. Na organização moderna das empresas houve uma pulverização do
poder. Há mais chefes hoje que na rígida estrutura piramidal que vigorava até
pouco tempo atrás, e cada um deles tem menos poder. Portanto, existe também uma
competição horizontal. “Houve uma falsa distribuição de poder, fazendo com
que a posição da chefia seja a mais ameaçada”, observa a psiquiatra Silva
Jardim, do Ipub.
Além disso, é sobre os chefes intermediários que recai a maior cobrança. Ele
fica espremido entre a cobrança cada vez mais implacável de metas por parte da
direção da empresa e o medo de que seus subordinados não sejam capazes de
atingir os objetivos. Quando a equipe do Ipub fez a pesquisa sobre as condições
de trabalho no Banco do Brasil, foram ouvidas pessoas em todas as posições
hierárquicas – caixas, atendentes, funcionários da compensação, chefias
intermediárias e superintendentes. A constatação foi que a maior carga de
trabalho estava nas chefias intermediárias. “É um pessoal que não tem
horário, se for preciso prorroga o expediente e é quem toca adiante a pressão por
desempenho.”, diz João Ferreira, diretor do Ipub. Como se não bastasse,
boa parte dos chefes faz ainda uma confusão fatal. Acham que são meio donos da
empresa onde trabalham. Quando são demitidos, ou rebaixados, passam por uma
grave crise de identidade.
Com raras exceções, desmandos de chefia têm o aval da empresa, nem que seja por
omissão. A psiquiatra Silva Jardim considera que o conflito é inerente ao
trabalho, mas a humilhação é simplesmente abuso de poder – e, como tal, não
deve jamais ser tolerada. A companhia que não age para coibir esse tipo de ação
é co-responsável pelas conseqüências. A psiquiatra lembra que já houve tempo em
que as empresas não se responsabilizavam pelos danos físicos do trabalho. Até o
fim do século XIX, não se falava em saúde nas fabricas. Perdiam-se pedaços do
corpo em acidentes, e o trabalhador ficava totalmente desamparado. Em 1890
surgiu, nas minas de carvão da Inglaterra, a figura dos delegados de segurança
e só quase trinta anos depois, em 1919, se formou o conceito de doença
profissional.
A saúde mental só começou a merecer alguma atenção das empresas no final do
século XX, quando os problemas decorrentes da organização do trabalho começaram
a comprometer a produtividade. Hoje, existe uma lista de distúrbios psíquicos
que podem ser considerados como doenças relacionadas ao trabalho. Entre elas,
algumas manifestações de alcoolismo crônico, episódios depressivos, síndrome de
fadiga, transtornos do ciclo do sono e, no limite, o burnout, nome técnico da
síndrome do esgotamento profissional, uma espécie de blecaute provocado por
excesso de stress. “No início da Revolução Industrial foi preciso dar
atenção aos limites físicos do homem para conter a mortalidade nas fábricas.
Agora, o mesmo tem de acontecer com os limites psíquicos”, conclui Silvia
Jardim.
A rotina humilhante
As atitudes listadas abaixo não fazem parte da política de recursos humanos de
nenhuma empresa. Ainda assim, esses castigos são comuns no dia-a-dia do
relacionamento entre chefes e subordinados.
– Parar de cumprimentar
– Ignorar a presença
– Menosprezar ou ironizar o trabalho em público
– Deixar sem ocupação
– Transferir de setor com intenção deliberada de isolar
– Retirar os instrumentos de trabalho: telefone, fax, computador
(publicado em Veja de 31 de outubro de 2001 –
pgs 102 a 109