O perfil do executivo brasileiro
5 de fevereiro de 2019Gerencie seu chefe
5 de fevereiro de 2019As rígidas regras do mercado de capitais criaram uma nova paranóia nas companhias – todo mundo precisa ser vigiado
A rotina dos executivos da Redecard mudou um bocado desde a abertura de capital da administradora de cartões, em junho — a mais vultosa estreia na bolsa nos últimos três anos, com oferta inicial equivalente a 3,5 bilhões de reais. Um dos novos hábitos entre eles é acompanhar a cotação das ações de tempo em tempo. Outro — menos excitante e mais burocrático — é seguir uma série de regras impostas pela listagem da companhia no Novo Mercado, o grau máximo de governança corporativa do mercado brasileiro. Até agora, um conjunto de 15 processos foi criado para fiscalizar o cumprimento dessas novas normas. Alguns deles já começaram a alterar a rotina da Redecard. Os vendedores, por exemplo, passaram a seguir uma nova cartilha de análise de clientes, segundo a qual devem evitar instalar as máquinas leitoras de cartões em fabricantes de armas ou em hotéis sob suspeita de exploração da prostituição. Sempre que houver um anúncio relevante para a Redecard, seja uma aquisição, seja a entrada num novo setor, os diretores terão de provar que não fizeram uso de informação privilegiada para negociar ações da empresa. O controle de todos esses processos está nas mãos do executivo Douglas Oliveira, diretor de risco e controle da Redecard, que há quase um ano incluiu o termo compliance em seu cartão de visita. O conceito (sem equivalente em português e já devidamente incorporado ao vocabulário dos negócios) representa a tarefa de fazer com que regras de conduta sejam criadas e seguidas à risca dentro das empresas. “Minha missão é zelar pelos valores e pela imagem da companhia”, diz Oliveira.
A vida sob vigilância permanente tornou-se uma nova obsessão dentro de grandes companhias em todo o mundo. Pelo menos duas situações favorecem a ascensão da patrulha corporativa. A primeira, no caso brasileiro, é a sofisticação dos mecanismos de controle do mercado de capitais e a crescente adesão das companhias aos níveis mais rigorosos de governança. A segunda é a adaptação das multinacionais com capital aberto nos Estados Unidos — e, por consequência, de suas subsidiárias — às rígidas regras da Lei Sarbanes Oxley. Uma mostra da crescente preocupação das empresas com o tema é o número de afiliados da americana Society of Corporate Compliance and Ethics, maior organização mundial sem fins lucrativos com o objetivo de estimular a ética nos negócios. Em 2006, havia 600 empresas associadas. Passado pouco mais de um ano, os associados chegaram a 900, incluindo nomes como Wal-Mart e Microsoft. “As solicitações de clientes interessados em estruturar seus departamentos de compliance têm aumentado mês a mês”, diz a brasileira Shin Hong, sócia responsável pela recém-criada área de compliance do escritório Tozzini Freire. “Organizar essas operações é algo complexo e caro, mas fundamental para assegurar a perenidade do negócio.” Um dos casos mais recentes que ilustram a urgência em monitorar as atividades dos executivos é o da alemã Siemens, que entrou numa crise em abril deste ano, logo após suspeitas de fraudes que teriam causado prejuízo de 258 milhões de dólares. Em julho, em meio às investigações, o presidente mundial, Klaus Kleinfeld, pediu demissão.
O primeiro desafio para o responsável pela área de compliance é quebrar a imagem de que sua equipe se resume a um grupo de burocratas chatos, pagos para atrapalhar a vida dos colegas. “Meu trabalho exige muito diálogo e relacionamento”, diz Oliveira, da Redecard. “Converso com os executivos, falo da importância da área e das regras para a manutenção da boa imagem da empresa.” Desde que a Redecard começou a se preparar para abrir o capital, a equipe de Oliveira passou de cinco para nove pessoas e ganhou um orçamento de 7 milhões de reais por ano. Nesse período, foi criado também um comitê de compliance — formado por sete representantes de cada uma das áreas da empresa, como os diretores de finanças e de tecnologia. O grupo se reúne a cada dois meses para discutir normas e condutas internas. Segundo Oliveira, parte do trabalho foi facilitada pelo fato de a Redecard já contar com uma área de risco desde sua fundação, em 1996 — entre outras atividades, esse departamento monitorava o conteúdo dos e-mails enviados pelos funcionários e o acesso à internet. (Há alguns anos, um funcionário foi demitido por enviar informações de dados sigilosos de cartões de crédito de clientes.) A prática demonstrou que uma das melhores maneiras de convencer os funcionários da importância da área é tornar as conquistas conhecidas de todos. Um dos episódios recentemente alardeados foi o resultado de uma investigação com ares policialescos, na qual a equipe de compliance identificou um ex-funcionário que estava espalhando informações falsas sobre a Redecard no mercado. “Graças a informações que recebemos de clientes e funcionários, conseguimos identificar o sujeito e processá-lo por calúnia e difamação”, diz Oliveira.
Uma das tarefas mais árduas dos profissionais que atuam na área de compliance é romper com velhos hábitos incorporados pela companhia — e que até então eram vistos como práticas comuns de mercado. Desde que assumiu a diretoria de compliance da subsidiária brasileira do laboratório americano Bristol-Myers Squibb, em 2005, o executivo Alexandre Dalmasso vem combatendo uma tradicional prática da indústria farmacêutica: dar presentes caros a médicos, como televisores de LCD, e bancar viagens dentro e fora do país. “Só bancamos viagens de médicos se eles forem dar palestras a nossos funcionários ou se tiverem a necessidade de participar de algum congresso para atualizar suas palestras. Não queremos que esse relacionamento se transforme numa moeda de troca”, afirma Dalmasso.
Um dos ônus de propagar maneiras de controlar o que se passa em toda a companhia é aumentar a burocracia — o que não deixa de ser certo retrocesso, sobretudo para as empresas que mantêm estruturas magras. Na AES Eletropaulo, por exemplo, alguns contratos com fornecedores que antes eram avaliados em poucos dias hoje podem levar até três semanas. “Cumprir uma legislação como a Sarbanes-Oxley tornou nosso trabalho mais complexo'”, afirma Maurício Vargas, vice-presidente de governança corporativa do grupo AES no Brasil, controlado pela americana AES. Vargas, que coordena uma equipe de dez profissionais, já treinou 415 funcionários para que eles passassem um pente-fino nos contratos dos prestadores de serviços, de modo a descobrir se algum deles sonega impostos ou explora mão-de-obra infantil. Como resultado, fornecedores que acumularam muitos litígios trabalhistas ou problemas fiscais e tributários nos últimos quatro anos. “Às vezes, um simples contrato de 50.000 reais fechado com um fornecedor de comportamento duvidoso pode comprometer a integridade de nossa empresa”, diz Vargas.
Tanto trabalho já fez com que algumas companhias desistissem de
seguir esse
caminho. A Rhodia, por exemplo, decidiu recentemente deixar o mercado
americano de ações até o final deste ano (a empresa vai continuar negociando
seus papéis na Europa, onde as regras são menos rígidas). “Temos apenas
1% dos nossos papéis no mercado americano e a corporação entendeu que o alto
custo e as inúmeras exigências do mercado tornam nossa permanência
inviável”, diz André Luis Rodrigues, vice-presidente financeiro da Rhodia
para a América Latina. Rodrigues garante, porém, que vai manter programas de
compliance, como canais para denúncias, um comitê de auditoria e outros
sistemas de controles internos. “Às vezes, é difícil notar os resultados
de uma política de compliance, porque ela está lá justamente para evitar que os
problemas surjam”, diz Shin, do Tozzini Freire. “Mas as empresas que
apostam nessas práticas normalmente conseguem obter e manter um bem muito
valioso, a boa reputação da companhia.”
Patrulha constante
O que representa a área de compliance numa grande empresa
Missão
Criar e garantir o cumprimento de regras de conduta. Para isso, algumas companhias treinam centenas de funcionários.
Equipe
A equipe, em média, compreende dez profissionais. Em geral, o diretor acumula funções como diretoria de risco ou financeira.
Custo
O investimento em atividades relacionadas à área pode chegar a 7 milhões de reais por ano, como no caso da Redecard.
Fonte: REVISTA EXAME – 10/10/2010 – Pág. 146 a 148.