Planejamento e Gerenciamento Estratégicos
5 de fevereiro de 2019Alta Confiança
5 de fevereiro de 2019Sempre que há uma fusão, a maior parte das empresas só lida com as diferenças de cultura de uma e de outra quando já é tarde demais?
Porque cultura não é algo que se possa reduzir a números. Toda fusão começa, em geral, pela análise financeira, além de uma ou outra análise estratégica. Se as avaliações forem positivas, segue-se possivelmente uma comparação das culturas das empresas em provável processo de fusão. Digo “provável” porque, no momento em que uma fusão começa a parecer atraente, a possibilidade de um acordo já se insinuou no processo. Com isso, as chances de um recuo — mesmo que motivado pelas melhores razões possíveis ou por mais racional que pareça — começam a diminuir.
Talvez você ache que as inúmeras atividades de fusão e aquisição ocorridas recentemente tenham ensinado às empresas o que fazer para não sucumbir a essa atração. Algumas resistiram. Muitas, porém, não foram fortes o bastante. Culpe-se a natureza humana, os bancos de investimento, a concorrência feroz do mercado global ou seja lá o que for. Como consequência, temos o “pecado” que você aponta: o desprezo peIas diferenças culturais das empresas envolvidas na fusão.
No entanto, na corrida maluca para a linha de chegada, cometem-se muitos outros erros em processos de fusão e aquisição. Talvez o mais doloroso seja observar a “síndrome da troca de papéis”, que acontece quando um comprador quer tanto fechar’ negócio que acaba fazendo concessões no mínimo lamentáveis e, na pior das hipóteses, destrutivas. Em muitas situações desse tipo, o comprador tende a ceder tanto na ânsia de fechar negócio que, em última análise, a empresa adquirida não pode efetivamente ser considerada como tal. Ela simplesmente continua a dar todas as ordens. Nesses casos, os executivos da empresa adquirida comportam-se como se ainda fossem autônomos — ou, pior, com uma dose de hostilidade em relação aos compradores. Repudiam toda e qualquer sugestão de mudança com objeções do tipo: “Você não sabe como esse tipo de indústria funciona. Se nos deixar em paz, colherá os lucros no final do trimestre”. Não é de espantar que a maior parte dos “proprietários” pegos nesse tipo de situação se veja fazendo a seguinte indagação: “Porque gastei tanto dinheiro por nada?”
Um caso clássico de papéis trocados está acontecendo atualmente na sede da Boston Scientific Corp. Tudo começou em 2004, quando a empresa pagou 742 milhões de dólares pela Advanced Bionics, empresa da Califórnia que produz dispositivos eletrônicos para restauração da audição e que permitem o bombeamento de analgésicos no sistema sanguíneo. Na época da compra, a Advanced Bionics estava tendo prejuízos, mas a Boston Scientifíc estava convencida de que o negócio tinha potencial para gerar retornos polpudos e podia desempenhar um papel significativo em seu sucesso futuro.
Talvez um dia isso aconteça de fato. Mas até agora a Boston Scientifíc e a Advanced Bionics têm perdido um bocado de tempo brigando na Justiça Federal. No âmago do desentendimento está uma concessão feita durante as negociações. Alfred Mann, dono da Advanced Bionics, insistia em continuar na liderança da empresa. A Boston Scientifíc. seduzida pela possibilidade de aquisição, disse “sim”.
Talvez os altos executivos achassem que Mann, de 81 anos, fosse se aposentar em breve. Ou, quem sabe, achassem que Mann pudesse tornar a empresa lucrativa. Nada disso aconteceu. Em julho, a Boston Scientifíc pediu a Mann que renunciasse a seu posto sob a alegação de que ele resistia às mudanças necessárias para a transformação da Advanced Bionics em empresa lucrativa. Mann rejeitou a alegação e recusou-se a sair, dizendo que, por contrato, poderia dirigir a Advanced Bionics por quanto tempo quisesse. Um juiz federal lhe deu razão — e é essa decisão que está sendo contestada agora. (Nota da redação: a disputa judicial se encerrou no dia 9 de agosto e a Boston Scientifíc vai pagar mais 1,1 bilhão de dólares para garantir o controle total da empresa.)
Não sabemos o suficiente sobre o caso para dizer qual lado estava certo e qual estava errado. Sabemos, porém, que a síndrome da troca de papéis produz efeitos que não valem a pena. Se você não tem condições de comprar uma empresa nos seus termos, não se deixe seduzir pelo desejo de comprá-la; ou, no mínimo, procure algum tipo de proteção. No caso de um proprietário que deseje continuar no negócio, esqueça os pacotes de pagamentos adicionais. Ofereça ao empreendedor ou executivo da empresa adquirida um acordo limitado de permanência e mantenha sua opção de “liberar” essa pessoa quando bem entender. Esse tipo de acordo lhe dá a margem de manobra de que você precisa para fazer as mudanças estratégicas e pessoais necessárias.
Ninguém gosta de ser roubado. No entanto, a síndrome da troca de papéis, que pode paralisar as empresas e minar até mesmo os mais promissores acordos de fusão e aquisição, faz exatamente isso. Para piorar, ela usa a própria “arma” da empresa que fez a aquisição para “assaltá-la”.
Fonte: REVISTA EXAME – 29/08/2007 – Pág. 120 a 121.